1º ciclo
“No comboio Descendente”, de Fernando Pessoa
Nenhum trem descendente
Vinha Tudo à Gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada
Nenhum trem descendente
De Queluz à Cruz Quebrada…
Nenhum trem descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela
Nenhum trem descendente
De Cruz Quebrada a Palmela…
Nenhum trem descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não
Nenhum trem descendente
De Palmela a Portimão…
Anti-Gazetilha
Nenhum trem descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada –
Nenhum trem descendente
De Queluz à Cruz Quebrada…
Nenhum trem descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela –
Nenhum trem descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela…
Nenhum trem descendente
Mas que grande reinação:
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não –
De Palmela a Portimão
Fernando Pessoa
3º ciclo
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, enfim,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevi
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
Fernando Pessoa
Metade
Não me impeça de ver o que anseio;
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca;
Porque metade de mim é o que eu grito,
Mas a outra metade é silêncio...
Que a música que eu ouço ao longe
Seja linda, ainda que tristeza;
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante;
Porque de mim é partida
mas a outra metade saudade...
Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
E nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta
A um homem inundado de sentimentos;
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo...
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço;
E que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada;
Porque metade de mim é o que penso
Mas a outra metade é um pouco...
E que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável;
Que o espelho reflita em meu rosto
Um doce sorriso que me lembro ter dado na infância;
Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
A outra metade eu não sei...
para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais;
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço...
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém tente complicar
Porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer;
Porque metade de mim é plateia
E a outra metade é canção...
Porque metade de mim é amor
E a outra
metade... também.
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