Crónica

Recordações
Vítor Encarnação

Todos guardamos pedaços da nossa vida em caixas de papelão. Nunca fomos capazes de nos desfazer deles, nem quando mudámos de casa, nem quando mudámos de estado civil, nem quando mudámos de rumo. Resistem às limpezas, ao fogo, ao lixo, mantém-se imunes à dor, à raiva, à saudade, à indiferença, subsistem para além da memória e do esboroar do tempo. São pedaços de nós, marcos da nossa existência, cadernos, bonecas, papéis escritos, desenhos, fotografias, notas da escola, cartas de despedida, bilhetes de viagens, postais ilustrados, moradas perdidas, canetas gastas, isqueiros vazios, números de telefone que já não existem, agendas mortas, chaves que já não abrem porta nenhuma. Parecem ser coisas avulsas, objectos desgarrados uns dos outros, partes sem um todo, flores de vidro e de plástico colhidas ao acaso. Parecem ser isso tudo, mas não são. São na verdade a casa onde a nossa alma mora. E essa casa tem janelas e paredes feitas de tempo e memória. É lá, no meio de recordações, que ela vive quase sempre sozinha, quase sempre em segredo. E de vez em quando abrimos as caixas de papelão e dentro de nós há coisas que se agitam quando pegamos naquela coleção de fragmentos da nossa vida. Pegamos-lhe ao colo como quem pega na criança que fomos, mas às vezes quem chora somos nós.
in Diário do Alentejo

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