Um inverno alentejano

Inverno
O Inverno faz-me crescer água na boca. 

Gosto que o nevoeiro me tape o horizonte para eu ir descobrindo o meu caminho mais devagar. 
Gosto que a luz se encolha e se vergue ao peso do chumbo do firmamento. 
Gosto que as nuvens se juntem umas às outras num forte abraço cinzento.
Gosto que o céu se derrame sobre a terra e que as ribeiras carreguem as sobras das nuvens no dorso das pedras de xisto. E que essas ribeiras, por causa dos dilúvios, cumpram o sonho de serem rios, nem que seja por um dia, nem que seja por uma noite, impedindo os homens, os carros, os tractores de as atravessarem. E gosto que essas ribeiras rasguem as margens e vão para além dos seus corpos normalmente secos e tísicos. E gosto que essas ribeiras levem consigo troncos e juncos, pardelhas e pedaços de cortiça. Gosto que corram bravas e vão à descoberta das terras mais altas e as provem. 
Gosto que o verde expluda nos campos e que os porcos se lavagem e que as sementes vinguem e que as árvores fiquem nuas e que o azul fuja do céu. 
Gosto das golas altas e das botas e dos lençóis de flanela e das meias de lã e dos cachecóis e dos casacos e das samarras e das mantas e dos chinelos de quarto e dos pijamas e dos roupões. 
Gosto de sopa quente e de café e de chá e de bolachas e de fatias de ovo e de açorda de poejos e de torresmos de rissol e de jantares de grão e de moleja e de orelha de porco e de linguiça assada e de pão quente com manteiga. 
Gosto das conversas à mesa e de repartir vinho e de rir e de contar lembranças e de ter pouca luz para poder ver melhor os amigos. 
Gosto que faça muito frio lá fora e eu esteja tapado com lenha a arder. 
E até gosto de ter um bocadinho de febre para comer canja e não sair de casa. 
E ainda é melhor se houver trovões a incomodar o silêncio e relâmpagos a queimar o escuro. 
E ainda é muito melhor que a chuva não cesse a noite inteira e bata nas telhas e nas janelas e desça pelas paredes e jorre pelas ruas e deixe poças grandes para as crianças brincarem. 
O vento é o ar a correr de um lado para o outro.

Vítor Encarnação, crónica publicada no jornal Correio Alentejo

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